A Ocidente, uma desolada paisagem

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 23/03/2024)

Vamos esquecer, por agora, que há uma guerra europeia que se pode tornar mundial. Por amor à disciplina do pensamento crítico, enfrentemos esta dolorosa pergunta: o que é o Ocidente e quais os seus valores atuais? Comecemos pelos EUA, cuja perspetiva, seguindo as vozes autorizadas da Casa Branca e do Congresso, considera existir um saldo positivo desta guerra. O que está em causa não é, nem nunca foi, a vitória da Ucrânia, mas sim usar esse povo como aríete para enfraquecer a Rússia, de acordo com orientações estratégicas há muito públicas e publicadas.

Trinta anos a encostar a NATO às suas fronteiras, sobretudo na Ucrânia, levariam o Urso a acordar. Mas os EUA estavam em prontidão. As sanções, o ataque à exportação de petróleo e gás natural russos, o impedimento de mais oleodutos (sabotagem do Nordstream II), a fuga de cérebros, o fomento da instabilidade no Cáucaso, tudo isso já estava prescrito num vasto documento que mais parece uma declaração de guerra: James Dobbins et alia, Extending Russia. Competing from Advantageous Ground, Santa Monica, CA, Rand Corporation, 2019, 354 pp..

Nesse saldo positivo dos EUA, além da rutura dos laços entre Berlim e Moscovo, entra também o alargamento da NATO e a convicção de que a Europa vai aumentar, duradouramente, as compras em armamento norte-americano (quer ganhe Biden ou Trump), assegurando que o bom negócio, nutrido com centenas de milhares de mortos e estropiados na Ucrânia, não vai ser interrompido, mesmo depois do calar das armas.

E que pensar da UE, a outra metade do Ocidente? Nunca a Europa sofreu, em tempo de guerra, com líderes tão perigosamente impreparados para governar. Em setembro de 2022, o triunfalismo: a presidente da CE troçava dos russos, dizendo que a eficácia das sanções obrigava Moscovo a usar os chips dos eletrodomésticos para fins militares… Hoje, um pânico antigo (“Vêm aí os russos!”) percorre as capitais europeias. Basta ouvir o “valente” Macron, ou ler o apavorado Charles Michel. Não só a Rússia resistiu às sanções, como cresceu com elas, diversificando a sua economia (isso já estava a ocorrer, desde as sanções de 2014, por causa da Crimeia).

Surpreendentemente, a indústria militar russa suplantou o conjunto da produção ocidental em material bélico corrente, como obuses de artilharia. Mas partir daí para lançar a mentira incendiária de que a Rússia quer atacar a NATO é criminoso. Putin sabe que isso desencadearia uma autodestruição generalizada. Esta guerra, além de ter enterrado o Pacto Ecológico Europeu, significou uma total subordinação europeia aos interesses do complexo militar-industrial e energético que governa os EUA. O europeísmo foi engolido pela máquina trituradora do belicismo. Nos próximos anos, pendularmente, o nacionalismo regressará em força. A Alemanha será comprimida entre uma França ressentida e uma Polónia militarista, atrelada a Washington. Se, ou quando, o euro vacilar, a “balança da Europa” entrará em ebulição.

Finalmente, o genocídio em Gaza marca a certidão de óbito dos alegados “valores ocidentais”. O direito à vida tem um valor de mercado. Modesto para as vidas ucranianas. A preço de saldo para os corpos palestinianos.

Berlim, tristemente, repete a maldição de estar sempre no lado errado: apoia os autores do genocídio de hoje, porque estes foram vítimas do seu genocídio de ontem… O crepúsculo ocidental é desolador. Nem um pingo de transcendência. Uma ruidosa e amnésica vontade de poder, sem alma nem culpa.

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9 pensamentos sobre “A Ocidente, uma desolada paisagem

  1. Das poucas e CORAJOSAS vozes que se vão ouvindo, entre comentaristas deliberadamente ALDRABÕES, que não, apenas, ingénuos ou limitados de conhecimentos!

  2. Os “valores” Ocidentais começaram logo cedo, na expansão europeia dos Séculos XVI e XVII. Eram os de civilizar as massas ignaras, muitas delas até canibais, que povoavam o resto do mundo.
    Nós íamos levar a luz da civilizacao, do Cristianismo e toda a conversa da treta semelhante. Na realidade o que se queria era a exploração máxima dos recursos da terra e a população que lá vivia eram primitivos e brutos, sub humanos, inferiores e não interessavam nada.
    Pelo que se África e Índia tiveram a sorte de ter climas corrosivos para a população branca que impediram uma transferência em massa nesses primeiros tempos, outro tanto não aconteceu na América, Austrália e Nova Zelândia.
    Ai as populações residentes foram praticamente exterminadas por valorosos guerreiros cristaos enquanto os nossos padres discutiam se eles tinham almas.
    A população indiana sofreu vagas de fome terríveis, com a imprescindível colaboração de elites vendidas, enquanto os seus recursos agrícolas eram desviados para satisfazer as necessidades e os luxos do colonizador.
    A África sofreu a perda de 20 milhões dos seus filhos para o tráfico negreiro com a colaboração de bandidos locais recrutados pelos negreiros.
    Mas foi o seu clima pouco ameno que os salvou da campanha de extermínio em massa que caracterizou a actuação dos colonizadores na América, Austrália e Nova Zelândia. Claro que da pilhagem dos seus recursos via capangas locais e deserdados da sorte que não se importavam de ir para a África arriscar as doencas que lá havia porque aqui não tinham nada ninguem os livrou. Mas a não ser nas terras mais a Sul, com melhor clima, a transferência massiva de populações europeias nunca se deu.
    E foi isso que os livrou do destino cruel dos nativos americanos.
    O problema é que, de alguma maneira, fomos sempre arranjando maneira de achar que os russos, apesar destes também serem brancos, eram de algum modo bandos de selvagens e o civilizados a merecer as nossas campanhas civilizadoras.
    O que tambem lhes valeu foi que em boa parte do território o clima também não era bom mas no Sul e Crimeia o caso piava mais fino.
    Os genovezes foram particularmente implacáveis em criar estacoes de comércio que compravam escravos aos tártaros da Crimeia e Sul da Russia, que viviam da pilhagem.
    A escravidão por terras ocidentais, da Catalunha a Itália, foi o destino de milhares e milhares de desgraçados enquanto outros iam bater com os ossos ao Imperio Otomano.
    Foi evitar estas razias de pilhagem de que os ocidentais muito beneficiaram porque tanto se lhes dava escravizar um negro que consideravam pagão como um branco considerado meio selvagem e pagão que ditou que a Rússia começasse a achar boa ideia conquistar os territórios a volta. O tal pavoroso Imperialismo russo.
    O problema é que esta mentalidade, tal como as células terroristas adormecidas, não morreu nem morrerá. Como disse o escritor alemão Gunther Grass “isto nunca acaba, isto nunca acabará”.
    Podíamos ter seguido outro caminho. O caminho do negócio limpo, honesto, comprar e vender com lisura. Se não temos recursos temos pelo menos industria, podiamos fazer isso.
    A escritora de livros policiais e com grande densidade psicológica Agatha Christie retratava o que significa a nível individual uma mentalidade destas no seu livro “Noite sem Fim”.
    Um sujeito em vias de ser executado por assassinato conta a sua história. Sempre fora adepto de conseguir o que era dos outros, custasse o que custasse. Matando, se necessário fosse. Aos 10 anos matara um colega, afogando o num lago gelado para lhe roubar um relógio que cobiçava.
    Acaba por casar com uma jovem norte americana, decente e genuinamente apaixonada. Podia ai ter seguido outro caminho, refazer a vida com alguém que o amava, aproveitar os recursos que tinham. Mas optou por, mais uma vez, matar.
    Acabou certamente na ponta de uma corda.
    Também nos podíamos ter seguido outro caminho agora que a tecnologia que temos até nos permite. Temos modos de produção com que nem podiamos sonhar no tempo das caravelas. A Rússia até já se tinha deixado disso de alternativas ao capitalismo.
    Mas, tal como o protagonista de “Noite sem Fim” escolhemos o outro caminho. Não arrisco prognósticos para onde esse caminho nos vai levar mas tendo em conta o destino de todos quantos tentaram destruir a Rússia e capaz de não ser lá muito bom.

  3. Glosando o titulo do texto de Soromenho Marques é caso para dizer:.” nada de novo na frente ocidental. De facto, sobretudo a Europa podia ter seguido outro caminho mas parece que se viciou na malandragem e sobretudo na hipocrisia que pôs em pratica com a colonizaçao recorrendo ao argumento de levar os seus valores a outras paragens; para consumo interno defendia uma pretensa liberdade e igualdade (meramente formais) mas para consumop externo, sem qualquer rebuço, escravizava as populaçoes a fim de satisfazer a ganancia dos novos senhores do mundo.
    A este historial acresce a inacreditavel impreparaçao dos politicos atuais que parece nao perceberem o que está em jogo e que estao a dar tiros nos proprios pés. Uma autentica corja, pela qual nao se con segue ter qualquer vestigio de respeito!

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